domingo, 3 de março de 2013

Crítica: espetáculo Festa na Cidade, da Cia. Experimental de Dança Waldete Brito

Abaixo, compartilhamos a crítica escrita pelo antropólogo Maurício Costa*, publicada no jornal Diário do Pará do dia 02/03/2013, Caderno Você:
 
 
O espetáculo “Festa na Cidade” da Companhia Experimental de Dança Waldete Brito é uma criação sui generis. Tem essa qualidade por se debruçar sobre um universo de dança distante do meio acadêmico, embora a academia o ambiente pelo qual transitaram ou transitam muitos de seus componentes. O espetáculo apresenta o mundo das festas de brega de Belém: a pulsação dançante dos bailes de aparelhagem, que têm uma longa história nos bairros da periferia da cidade. Nestes espaços e eventos, a dança se aprende e se recria de forma livre e balizada pelos valores e formas de convivência conhecidas pelo público frequentador.

O que o espetáculo apresenta, no entanto, é muito mais que uma reprodução desse universo. Trata-se de uma inovação, em que a matéria-prima das interações entre dançarinos nas festas bregueiras de Belém é recriada numa nova perspectiva. O voo da inventividade artística ultrapassa em muito a fonte de consulta para seu roteiro, que foi o livro homônimo ao espetáculo. A obra “Festa na Cidade”, de minha autoria, é um estudo etnográfico sobre o universo do circuito de festas de brega, de aparelhagens e de apresentações musicais ao vivo, em que se movimenta pela cidade um público cativo apreciador de brega pop, tecnobrega, tecnomelody e músicas da saudade.

O roteiro do espetáculo de dança “Festa na Cidade” vai muito além do realismo do texto etnográfico de onde tomou inspiração. A apresentação recria a dinâmica da festa confundida com o cotidiano dos dançarinos, dentro e fora do salão. O espetáculo se inicia com os DJ na “nave” da aparelhagem mandando abraços para o público. Em seguida, casais como os de bailes da saudade começam a dançar de forma quase solene. Esta dose de formalidade é rapidamente deixada para trás por momentos cada vez mais vibrantes em que é simulada a efervescência, o paroxismo da festa. Ao mesmo tempo, a movimentação dos dançarinos, sua expressão corporal explora novas dimensões dos conhecidos passos, rebolados e “caquiados” das danças no salão de festa. A dança torna-se metáfora das relações interpessoais, dos gostos, dos desencontros, dos anseios e mesmo do desvario dos que vivem as festas. Música, dança e corpo compõem um todo que põe em sintonia os artistas e o público, que certamente ali identifica a realidade destas festas tão comuns em nossa cidade. Só que neste caso, esta realidade é vista por outro ângulo: o cenário familiar para muitos é uma fabricação espetacular, que de todo modo, é olhada de fora.

As apresentações musicais não seguem o percurso histórico linear do surgimento histórico das vertentes do brega paraense. Ao invés disso, as apresentações alternam tipos de dança e hits de diferentes fases de sucesso do brega do Pará. Isto garante ao espetáculo uma reserva importante de imprevisibilidade e de liberdade criativa. É o caso da surpresa final, com a entrada em cena da cantora Iva Rothe, que apresenta à capela o hit inaugural do brega paraense dos anos 1980: “Ao pôr do sol”. Rothe acompanha seu par na dança final ao mesmo tempo em que pontua o encerramento da apresentação. O espetáculo que começou com som de aparelhagem e numerosos casais de dançarinos se conclui com um par solitário, de fim de festa, ao som de voz sem acompanhamento instrumental.

O espetáculo-síntese da cultura festiva bregueira paraense é um deleite para os olhos e para os amantes da dança, venha de onde ela vier: dos salões eruditos, dos palcos de teatros ou das pistas das casas de festa da periferia.
Maurício Costa

Belém, 20/02/2013

*Maurício Costa é Dr. em Antropologia pela USP, professor da Universidade Federal do Pará e autor do livro Festa na Cidade: o circuito bregueiro em Belém do Pará (Editora da UEPA, 2009).


Foto: Mauro Ângelo